A década de 80 dava seus primeiros passos. O Del Rey era a novidade do mercado e o Gol ainda era quadradinho. Nessa época a Eletrobras lançou um desafio para renovar sua frota: os interessados deveriam criar um veículo capaz de transportar 250 kg, com autonomia mínima de 65 km e velocidade máxima entre 50 e 60 km/h. João do Amaral Gurgel, engenheiro renomado e dono da montadora que ostentava seu nome, arregaçou as mangas e trouxe o primeiro elétrico produzido em série na América Latina, o Itaipu E-400.
Os tempos eram outros. Os 76 elétricos fabricados pela Gurgel fizeram sucesso com o cliente (e com algumas outras empresas). A tecnologia, no entanto, era pré-histórica se comparada aos carros de hoje. No fim das contas, a vida do modelo foi breve: o Brasil ainda não estava preparado para a chegada dos elétricos.
E hoje, 40 anos depois, qual é a realidade? Estamos preparados? Quem comprar um elétrico vai ter dias tranquilos ou viverá fortes emoções?
Quando pensamos em elétricos é natural pensarmos apenas no veículo. Coisas como tempo de recarga ou a vida útil da bateria são questões importantes. Mas é preciso ir além do carro quando se pensa no futuro dos elétricos no país. A rede da sua casa aguenta recarga? É possível carregar o carro no dia a dia? Há pontos de recarga em viagens mais longas? Convidamos você a mergulhar um pouco mais fundo nesses questionamentos, afinal, estamos todos no mesmo barco!
CASAS PREPARADAS
São Paulo deu o primeiro passo e a Lei n° 17.336 obriga novos empreendimentos construídos na região a oferecerem pontos de recarga. A lei é válida apenas para edifícios comerciais e residenciais. Para quem mora em um prédio antigo ou em uma casa, é necessário algum esforço, mas é possível ter seu ponto de recarga para deixar seu carro bem alimentado durante a noite (afinal, em uma tomada comum, a recarga completa pode levar de 8 a 10 horas, mas o custo é cerca de 5x menor se comparado a um carro movido a gasolina). A solução ideal, no entanto, é a utilização de uma rede trifásica, com wallbox (a caixa fixada na parede, onde seu carro é conectado para recarregar as baterias) e alimentação por células fotovoltaicas (energia solar). Com algum investimento para adaptar a rede elétrica da casa, comprar um Wallbox (valores entre 4 mil e 10 mil) e instalar as placas solares, dá para recarregar 80% da bateria em poucos minutos.
BATERIAS
Quando falamos de baterias, parte do assunto diz respeito ao carro, mas a questão vai além. As baterias atuais são produzidas com lítio e cobalto, componentes que também são usados em baterias de celulares e computadores. Calcule a demanda futura, quando todos os carros forem elétricos! Esta pressão afetará os preços das baterias. Mas nada é tão ruim que não possa piorar: 50% do cobalto está na República Democrática do Congo e 75% do lítio na Bolívia, Chile e Argentina. A equação leva a especulações sobre a possível escassez da matéria-prima, às variações no preço e, principalmente, ao universo da geopolítica, já que recursos importantes nas mãos de uma única nação podem levar a conflitos variados.
FÁBRICAS
Fábricas precisarão ser convertidas para montadoras de veículos elétricos, uma ação complexa, de grande porte, em um setor que trabalha com ciclos de produto de longo prazo. Fazendo contas, um novo projeto de carro demora 4 anos a partir do zero e a Europa tem cerca de 8 anos para transformar 100% de sua indústria em produtora de carros elétricos. O prazo é curto no velho continente, nos EUA e em qualquer lugar. O mesmo acontecerá no Brasil. A alteração das fábricas exigirá investimentos pesados e as montadoras cobrarão incentivos para avançar.
ASPECTOS SOCIAIS
Carros elétricos demandam menos componentes que um veículo tradicional para serem produzidos e exigem menos mão de obra. Estas características vão impactar a cadeia produtiva e os empregos, que devem cair 12%, se considerarmos uma pesquisa encomendada pela pela Volkswagen na Alemanha para o Instituto Fraunhofer para Organização e Engenharia Industrial. Se a fonte for o Departamento Federal de Estatísticas da Alemanha (Destatis), o problema é ainda maior, com a possível eliminação de 49% das vagas do setor até 2030, sem contar os impactos na cadeia como um todo. O desaparecimento de alguns fornecedores e a redução do volume de funcionários ligado à montagem podem gerar protestos, protecionismo e conflitos variados.
REDE DE ABASTECIMENTO
Ok, vencemos diversas batalhas: as fábricas se adaptaram, as baterias evoluíram e materiais alternativos entraram na receita. Refizemos a rede elétrica de nossas casas e carregamos nosso carro enquanto dormimos. O preço de um elétrico caiu em função da escala e o governo deu incentivos, reduzindo custos de importação e dando descontos no IPVA. A compra de um elétrico se tornou realidade para muitas pessoas! Quem mora em grandes centros, como São Paulo ou Rio de Janeiro, segue com a vida sem surpresas, afinal pode manter as baterias carregadas em postos disponíveis nas principais vias ou usando carregadores em edifícios comerciais. Mas a realidade pode ser mais complicada para quem precisa rodar grandes distâncias.
Recentemente um jornalista encarou o desafio de ir e voltar a Campos do Jordão, saindo de São Paulo. O trajeto de quase 400km envolve uma longa subida de serra, que exige mais pressão no pedal do acelerador e, por consequência, maior consumo. Esse foi um teste da “vida real”, com exigências de consumo variadas, como aquelas que encontramos em qualquer deslocamento. A história pode ser resumida em uma única palavra: tensão! O jornalista relatou que a preocupação com o nível de carga da bateria era constante, já que não há pontos de recarga no trajeto e uma bateria descarregada no meio da estrada só tem uma solução: chamar o guincho.
No fim das contas, o detalhe que será mais visível para o consumidor é a rede de abastecimento. Segundo a ABVE (Associação Brasileira de Veículos Elétricos), em janeiro de 2022 existiam cerca de 754 pontos de recargas em rodovias, shoppings e postos de combustíveis no país. Ainda há muito a ser feito, incluindo adaptações na legislação. De qualquer modo, certamente as redes conhecidas vão inserir pontos de recarga na estrutura atual à medida em que a venda de elétricos ganhar força.
A “moral da história” é que a infraestrutura atual é insuficiente, mas como há muitas questões envolvidas, sendo as financeiras e ambientais as mais importantes, o mercado tende a se mexer rápido. A infraestrutura crescerá a olhos vistos e em poucos anos, carregar uma bateria será tão simples quanto encher o tanque.